quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A minha lucidez não me trouxe o futuro





O Brasil na década de 70 foi marcado pelo período mais duro da Ditadura Militar. Com a decretação do AI-5, o regime se fecha. É o governo Médice, o mais cruel e sanguinário de todos os 25 anos de Ditadura. Foi neste contexto que Sérgio Sampaio lança seu primeiro LP: "Eu quero é botar o meu bloco na rua", que traz o grande sucesso da música que leva o título do disco.

 Esse disco é muito emblemático, não só porque apresenta ao público pela primeira vez o talento e genialidade de um artista, mas também  por explicitar, o que poucos conseguiram ver( por incapacidade de compreender uma obra a frente de seu tempo)  a dimensão política das letras de Sérgio Sampaio. O que poucas pessoas destacam quando analisam sua obra. Utilizando o expediente da metáfora, o que caracterizava grande parte das composições que procuravam criticar o período,  buscou passar seus sentimentos em relação ao período procurando obviamente escapar da censura.

 Assim Sérgio demonstrou todo seus talento e genialidade poética-crítica em músicas fantásticas como ,"Eu sou aquele que disse", "Viajei de trem", "Não tenho medo não" e a clássica "Eu quero é botar o meu bloco na rua" que compõe um conjunto de composições que tem uma grande unidade  de crítica ao regime como metáforas extremamente criativas e geniais.

"Viajei de Trem" é a primeira faixa do lado B deste primeiro LP. A canção é muito significativa do período. O pesquisador Washington Prudêncio em sua dissertação de mestrado, defendida em 2010 na Faculdade de Letras da UFRGS, sobre a obra de Sérgio Sampaio, discorre sobre a letra desta música :

".. traça uma metáfora da aflição, da ansiedade, da paranóia em que vivia o mundo neste período critico da história. Revela o artista, de forma intimista, num acordo com a tênebra da narrativa, a inventar elementos que sirvam de pretexto para fugir do refúgio de seu apartamento, em busca da marginalidade, das ruas cujas testemunhas, cegas e imóveis, são estátuas e monumentos: ruas que marcham. Fuga da sociedade careta, da prisão, do condomínio, onde o espaço a ser dividido tem regras rígidas. Porém o céu também é de cimento, e ensaia uma prisão próxima do real...A narrativa sugere um estado alterado de consciência, tão comum na geração hippie e na poesia beatnik. A manchete um aeroplano pousou em Marte dá conta que há um mundo externo e outros mundos, de que se movem, e que as pessoas operam mudanças nele.Há o desafio do jogo de esconde, da charada, de conservar-se à sombra, à margem. O narrador não só observa esse estado de coisas à desafiá-lo, mas também se angustia pelo fato que a lucidez, um dos efeitos colaterais da droga, não lhe basta para trazer o futuro, não garante certeza sobre as coisas que virão. A viagem se fecha com um "sugestionador olho, ali posto"; "seus olhos grandes sobre mim" uma citação da música Tropicália de Caetano Veloso, que é recorrente na obra de Sampaio. O elo com a realidade, a garantia de que não se disperse, a parte comunicante com seus pares e o mundo real que insiste em existir" (PRUDENCIO, In Sérgio Sampaio: Antitropicalismo na canção de um tropicalista convicto, Dissertação de Mestrado em Letras UFRGS,2010 p.30)  

Viajei de Trem  

Fugi pela porta do apartamento 
Nas ruas, estátuas e monumentos 
O sol clareava num céu de cimento 
As ruas, marchando, invadiam meu tempo 

Viajei de trem 
Viajei de trem 
Viajei de trem 
 Viajei de trem, eu vi... 

O ar poluído polui ao lado 
A cama, a dispensa e o corredor 
Sentados e sérios em volta da mesa 
A grande família e o dia que passou 

Viajei de trem, eu viajei de trem 
Eu viajei de trem, mas eu queria 
Eu viajei de trem, eu não queria... 
Eu vi... 

Um aeroplano pousou em Marte 
Mas eu só queria é ficar à parte 
Sorrindo, distante, de fora, no escuro 
Minha lucidez nem me trouxe o futuro 

Viajei de trem 
Viajei de trem 
Viajei de trem Viajei de trem, eu vi... 

Queria estar perto do que não devo 
E ver meu retrato em alto relevo 
Exposto, sem rosto, em grandes galerias 
Cortado em pedaços, servido em fatias 
Viajei de trem 
Eu viajei de trem 
Mas eu queria 
É viajar de trem 
Eu vi... 
Seus olhos grandes sobre mim 
Seus olhos grandes sobre mim




Gravação de Viajei de Wander Wildner em seu último CD:

Um comentário:

  1. Olá. Sou Washington, o autor de Antitropicalismo (...) e não se trata de dissertação de Mestrado, como você coloca no texto, e sim do meu TCC de graduação em Letras pela UFRGS. Se puder corrigir, agradeço. Abraço.

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