quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Na estrada: Um pouco da história da geração Beat por Paulo Marques




 "E me arrastei, como tenho feito em toda a minha vida... indo atrás das pessoas que me interessam... porque os únicos que me interessam são os loucos... os que estão loucos pra viver, loucos pra falar... que querem tudo ao mesmo tempo, aqueles que nunca bocejam e não falam obviedades... mas queimam, queimam, queimam como fogos de artifícios no meio da noite."
( Trecho do livro On The Road de Jack Kerouac)


Lançado no mês passado e ainda em cartaz  o filme "Na Estrada" de Walter Salles é uma adaptação para o cinema do livro "On the Road" do escritor norte-americano Jack Kerouac, um dos mais representativos integrantes da chamada geração ou movimento "Beat".

Neste post não falaremos do filme, mas sim realizaremos uma breve análise da geração Beat, movimento de contracultura surgido nos EUA nos anos 50 e precursos do que viria a ser o movimento hippie nos anos 60 e 70.





Precursores dos hippies,  os "beats" surgem na Califórnia nos anos 50 no contexto do pós segunda guerra como uma clara manifestação de revolta contra a lógica racional-capitalista que se consolidava a partir do "modo de vida americano", produtivista e consumista como paradigma da modernidade ocidental. Não foi a toa que um movimento como o dos Beats, de reação tão forte contra o establishment tenha surgidoo nos EUA, pois é justamente este o país onde o capitalismo com sua racionalidade burocrática atingia o auge do desenvolvimento. Os EUA saia vitorioso da segunda guerra mundial e consolidado como principal potencia econômica do mundo.

A chamada "geração Beat" constituía o primeiro movimento literário verdadeiramente popular que acontecia nos EUA desde a geração dos anos 20. seus principais representantes, os escritores e poetas Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Gregory Corso, Gary Snyder e Laurence Ferlingheti influenciava na virada dos anos 50 para os 60 mais profundamente a sociedade americana do que  Ernest Hemingway e Fitzgerald em seu tempo(Peçanha, 1987, p.28)

Dóris Peçanha em seu livro "Geração Beat, rebeldia de uma geração", afirma que " a juventude atual que deles tanto herdou tem uma noção mínima ou desconhecem totalmente a geração Beat. ignoram que os hippies e grupos expressivos como os Beatles são os continuadores de um estilo de vida, princípios e objetivos delineados por aquela geração(Peçanha, 1987, p.29)

Outro autor, Bruce Cook, autor de um dos livros de referência sobre os Beats " The Beat Generation" afirmou que se, em 1958 alguém fosse a um Campus universitário nos EUA e perguntasse quem eram os Beats, ouviria sempre a menção a três nomes: Jack Kerouac, Gregory Corso e Allen Ginsberg. Corso foi um jovem poeta de Nova York que mal tinha frequentado a escola secundária, mas tinha um papel ativo entre os Beats com uma significativa obra. Ginsberg, o poeta da obra "Uivo, Kaddish e outros poemas" se destacou pelo seu estilo próprio de poeta Beat com sua poesia confessional que era a antítese dos versos calculados e precisos dos poetas tradicionais. Seus poemas eram recitados por ele ao ar livre, no Campus, sua influência foi grande entre os jovens que o consideravam um guru, professor.


 Os poetas e escritores da Beat Generation( da esquerda para a direita Jack Kerouac, Neal Cassidy, Allen Guinsberg(de preto), Gregory Corso e Ferlingheti

Entretanto, foi Kerouac que se tornou o maior símbolo de escritor e poeta beat. Segundo os estudiosos da geração Beat, se fosse possível identificar um marco para o movimento este seria  o livro "On the Road" de Jack, romance que teve grande efeito sobre a juventude porque era o "seu livro", ou seja, o livro que contava a história daqueles jovens, ou melhor os anseios, sonhos e desejos de uma vida de liberdade e menos ordinária do que aquela desejada e vivida por seus pais.

Conforme estudo de Peçanha, as origens do termo Beat são obscuras, mas é um termo que remonta ao Oeste Americano do século XIX ou ao Sul rural. Os músicos de jazz, em 1940, também usavam esse termo cujo significado é bem claro para a maioria dos americanos, Beat é igual a "golpeado", "batido" e implica em um sentimento de "ser usado". Kerouac dizia: "Para mim, significa ser pobre...e ainda ser iluminado, ter idéias iluminadas sobre o apocalipse e tudo isso".

Coube a Revista LIFE fazer um dossiê sobre o fenômeno Beat, o que aconteceu muiito tarde, no final de 1959, através de Paul O Neil que definia os Beats como "Os homens influentes mais estranhos que o século XX já produziu"(Peçanha, 1987, p. 28)

Peçanha destaca a relação dos beat com a música em especial o jazz que teve grande influência no estilo de suas obras literárias:

"fizeram no seu tempo uma tentativa um tanto infrutífera de unir seu trabalho com o jazz. Sentiam que o jazz era a sua única música, o som nervoso da vida batendo à sua volta e ainda mais porque não tinha o respeito que veio a obter posteriormente. Pelo contrário, sugeria uma atmosfera ilegal. A rapidez, o impulso do jazz eram as qualidades que todo novelista beat tentava captar e imprimir em sua obra. Todas as primeiras novelas beat têm obrigatoriamente uma cena com jazz ( Peçanha, op.cit p. 30)

Jack Kerouac era obcecado por jazz e sua escrita, que pode ser verificada nitidamente em On the Road é marcada por uma prosa espontânea, jazzistica. Foi ele que mais trabalhou para a união da poesia com o ritmo do jazz. Mesmo que nem sempre essa idéia funcionasse, dado que a música era mais complexa e menos livre, a idéia sugeria um retorno à velha concepção de poesia como canção e indicava muitas possibilidades que posteriormente seriam utilizadas pelo rock, o que aconteceu nos casos dos poetas do rock dos anos 60 como Bob Dylan, Paul Simon e John Lennon entre outros. Peçanha destaca ainda que independente do jazz, a quase totalidade da poesia beat era escrita para ser recitada.

Dylan teve forte influência dos poetas Beats. Uma de suas referências foi o poeta e amigo Allen Ginsberg( na foto Dylan e Ginsberg)


Apesar de serem criticados e ridicularizados, os Beats sobreviveram porque tocavam nos sentimentos reprimidos da juventude de sua época, tornando-se porta-vozes da necessidade do indivíduo de ser reconhecido e valorizado, de ser agente da história e de falar franca e honestamente sobre as coisas que realmente importavam.

Estas características dos Beats foram de especial relevância para a juventude dos anos 50, período do "Macartismo"( perseguição à esquerda no  meio cultural em função da guerra fria). Foi, como bem apontou Peçanha, um tempo em que a maioria dos adultos era acometida de medo, hostilidade reprimida e um simples desejo de continuar vivendo, não importando a qualidade dessa vida"(Peçanha, Op. cit, p. 34) Eram os tempos do que viria ser conhecido como os "anos de ouro" do capitalismo,   em que muitos experimentavam, pela primeira vez, uma segurança econômica, em que a classe média expandia-se sem esquecer a extrema pobreza dos anos da grande depressão. Este povo trabalhara duro e esperava muito para chegar onde estava e uma vez estabelecido, abraçavam os valores e símbolos do capitalismo com rigor fervoroso. Era nesse contexto que surgiam os Beats com sua recusa a essa "felicidade" .

" De repente surgiram aqueles jovens selvagens, com roupas excêntricas, barbudos, fazendo desordem, gritando obscenidades e rindo muito alto. O que mais irritou os membros do establishment literário não foi a maneira mal educada dos Beats,  mas o fato do auditório até então indiferente ou aborrecido tornar-se  extremamente interessado e participante" ( Peçanha, Op. cit. p. 30)

Outro elemento importante dos Beats foi a tentativa não só de escrever novelas e poemas sobre uma vida diferente, mas praticá-la. Quase todos os Beats demonstraram uma capacidade para sobreviver à margem da sociedade de consumo, principal alvo de sua crítica. Alguns foram trabalhar em estabelecimentos educativos e outros buscavam apenas publicar suas obras, essa atitude levava sua marca, faziam  isso não apenas para sua subsistência mas, principalmente, para transmitir o espírito de sua geração.

A publicação de On the Road assinalou uma mudança imediata dos meios de comunicação  de massas em relação aos Beats e em particular a Kerouac, que passou a ser intensamente requisitado para entrevistas em TV e jornais. Sobre essa fama repentina Peçanha nos conta:

"as revistas que o haviam rejeitado de repente pediram o retorno de suas histórias; a Grove Press, que tinha lido seu livro The Subterraneans e estava retardando a publicação, anunciou que o publicaria o mais cedo possível...Um produtor de TV procurou Kerouac para fazer um seriado baseado em On the road. Kerouac não deu importância à idéia e logo o recjaçou. Pouco depois, o mesmo produtor colocou no ar o seriado Route 66, uma clara imitação de On the Road, com um ator que se parecia muito com ele"( Peçanha, 1987, 69)

Kerouac sentia-se desorientado com o repentino sucesso depois de seis anos de trabalho para lançar um livro e também já não se ajustava à imagem de síimbolo Beat. Estava com 35 anos e os episódios do livro haviam ocorrido uma década antes. Ele não era mais o jovem que seus eleitores imaginavam, também sofria uma mistificação sobre o escritor-viajante que negava suas outras obras e poemas.



On the Road remonta a 1951, quando Jack Kerouac despedira-se de seu amigo Neal Cassidy  na Califórnia( este amigo morreria em 1969, no México, seu corpo foi encontrado na beira de uma ferrovia, sendo desconhecido o motivo da morte), e retornara para Nova York pouco depois da publicação de seu primeiro livro The Tow and the City".

Kerouac começou a trabalhar em On The Road experimentando uma  nova técnica que ele chamou de "Prosa espontânea", descrita no livro de Peçanha:

" Não selecione a expressão mas siga os livres desvios da mente( associação) em infinitos mares de idéias, navegando no mar da língua inglesa sem nenhuma outra disciplina além do ritmo da respiração retórica e da sentença falada...Improvise tão fundo quanto quiser- escreve profundamente, procure tão longe quanto quiser, satisfaça a você primeiro e então o leitor não poderá deixar de receber um choque telepático e o significado-excitação pelas mesmas leis operando em sua própria mente" ( Peçanha, Op. cit, p. 70)

Seguindo essa técnica Kerouac buscava escrever o mais rápido possível, sem preocupação de parar e escolher a palavra mais adequada, mas deixar-se seguir pelo ritmo e sonoridade da palavra, de forma a criar uma literatura tão viva quanto a própria vida que descrevia.

Kerouac e seu grande amigo Neal Cassady  que no livro On The Road aparecem como os nomes de Sal Paradise e Dean Moriarty.


Durante os seis anos que Kerouac esperou para ver On The Road nas livrarias, escreveu nada menos que dez outros livros, mas nem todos foram publicados. Escrevia onde quer que se encontrasse e sob quaisquer condições. Foi esse o periodo mais criativo de sua vida e quando teve um caso com Mardou Fox, descrito no livro Subterraneans e que se tornou um triângulo, envolvendo Gregory Corso e Lawrence Ferlinghet. A maior parte de seus escritos foram criados na casa de sua mãe em Long Island, onde permanecia quando não estava viajando. Kerouac tentara pagar o aluguel de sua mãe fazendo trabalhos dos mais diversos, mas sua mãe conseguia manter a casa trabalhando em uma fábrica de calçados.

Kerouac continuou viajando sem descanso. Escrevia sempre que parava um pouco, á máquina, a lápis, chegando mesmo a gravar suas idéias. O único emprego que manteve por certo tempo foi o de guarda freio na ferrovia Southern Pacific, que lhe possibilitava viajar pela costa do pacífico. Mas Kerouac trabalhou em  tudo, pois  em suas viajens muitas vezes precisava fazer biscates para sobreviver. Foi auxiliar de cozinha, jornalista esportivo, apanhador de algodão, carregador de mudanças e aprendiz em fábrica de papel laminado.

Jack Kerouac casou três vezes, o primeiro casamento em 1945 durou três meses, o segundo em 1950 foi de seis meses e o terceiro em 1962 com Stella Sampis que viveu com ele e sua mãe até sua morte em 1969. Kerouac passou seus  ultimos anos morando com sua mãe, já inválida, ele dizia que continuava a viver com ela porque quando da morte de seu pai, prometera-lhe cuidar dela. E sempre frisava que escrevera tanto graças a ela, que com seu trabalho garantia o sustento de ambos.

Kerouac morreu em 1969, em St. Petersburg na Flórida, aos 47 anos. Tinha chegado a pouco a esta cidade com sua esposa e sua mãe para que esta pudesse se beneficiar do clima local. Kerouac morreu de hemorragia no estômago causada pelo excesso de bebida. Duas semanas antes de falecer, acabara em rápidos momentos de inspiração um livro iniciado em 1951. Kerouac foi enterrado em Lowell, onde poucos amigos compareceram ao seu funeral, entre eles John Clelon, Allem Ginsberg e Gregory Corso. deixou uma filha, Ian Kerouac.( Peçanha,1987,p.76)

Jack Kerouac pronto para colocar o Pé na estrada


Segundo Cook " Kerouac morreu vitima dos seus anseios inquietantes e da profunda alienação que ele sentia da cultura que o criou e da contracultura que ele ajudou a criar"( Cook, 1971, p. 5). Para  Cook fora Kerouac quem batizara toda uma geração ao dizer: " Você sabe, isto é realmente uma geração beat".


 

Dylan e Allen Ginsberg visitam o túmulo de Jack Kerouac para homenageá-lo


  
Dylan e Ginsberg cantam juntos

Os Beats constituiram-se, portanto, como a expressão mais importante de uma parcela de jovens dissidentes e isso porque não apenas fugiram de uma sociedade, mas fugiram para constituir um mundo alternativo com seu próprio ethos e Kerouac com sua importante obra representou essa visão de mundo que questionava profundamente o status quo.

Nesta primeira década do século XXI  onde o modo de vida questionado pelos Beats e posteriormente pelos Hippies parece ter vencido, principalmente com o avanço do neoliberalismo a partir dos anos 80, é muito dificil encontrar "dissidentes" com a imaginação e a criatividade da geração Beat, mas talvez os indignados de hoje carreguem um pouco da rebeldia Beat, mesmo que não saibam disso, o que nos permite acreditar que uma nova geração Beat possa ressurgir, e talvez  vencer a mediocridade que a geração capitanead por Kerouac não conseguiu vencer.


 
"Uivo" filme ainda inédito no Brasil sobre a vida de Allen Ginsberg


Nova edição pocket  de "On The Road" da L&PM


PS: O livro On the Road de Jack Kerouac foi publicado no Brasil pela primeira vez em 1984 pela editora Brasiliense, com o título de "Pé na estrada" , com tradução do jornalista Eduardo Bueno.  Posteriormente teve diversas edições por essa editora. Também a Editora L&PM lançou nos anos 80 a coleção "Olho da Rua" com as obras dos escritores Beats como "Uivo" de Allen Ginsberg, as obras de Gregory Corso e Lawrence Ferlingheti. Atualmente estão sendo reeditadas pela L&PM em edições pocket uma grande quantidade de obras de Kerouac, inclusive On The Road.

Referências:

CASSADY, N. O primeiro Terço, L&PM, Coleção Olho da Rua, 1986.
GINSBERG, A.UIVO Kaddish e outros poemas, L&PM, 1984.
PEÇANHA, D.Movimento Beat, rebeldia de uma geração, Vozes, 1987.
PEREIRA, C. O que é contracultura, Brasiliense, 1985.
KEROUAC, J. On The Road: Pé na Estrada. Brasiliense, 1988.
_____________Os vagabundos iluminados, L&PM, 2007.
_____________Despertar de uma vida de Buda, L&PM, 2010.

2 comentários:

  1. 1/CARLOS DE ASSUMPÇÃO – O maior poeta negro da historia do Brasil autor do poema o PROTESTO Hino Nacional da luta da Consciência Negra Afro-brasileira, em celebração completou 87 anos de vida. CARLOS DE ASSUMPÇÃO nasceu 23 de maio de 1927 em Tiete-SP completando 87 anos de vida com sua família, amigos e nós da ORGANIZAÇÃO NEGRA NACIONAL QUILOMBO O. N. N. Q. FUNDADO 20/11/1970 (E diversas entidades e admiradores parabenizam o aniversario de 87 anos do mestre poeta negro Carlos Assumpção) tivemos a honra orgulho e satisfação de ligar para a histórica pessoa desejando felicidades, saúde e agradecer a Carlos de Assunpção pela sua obra gigante, em especial o poema o Protesto que para muitos é o maior e o mais significante poema dos afros brasileiros o Hino Nacional dos negros. “O Protesto” é o poema mais emblemático dos Afros Brasileiros e uns das América Negra, a escravidão em sua dor e as cicatrizes contemporâneas da inconsciência pragmática da alta sociedade permanente perversa no Poema “O Protesto” foi lançado 1958, na alegria do Brasil campeão de futebol, mas havia impropriedades e povo brasileiro era mal condicionado e hoje na Copa Mundial de Futebol no Brasil 2014 o poema “O Protesto” de Carlos de Assunpção está mais vivo com o povo na revolução para (Queda da Bas. Brasil.tilha) as manifestações reivindicatórias por justiça social econômica do povo brasileiro que desperta na reflexão do vivo protesto.
    O mestre Milton Santos dizia os versos do Protesto e o discurso de Martin Luther King, Jr. em Washington, D.C., a capital dos Estados Unidos da América, em 28 de Agosto de 1963, após a Marcha para Washington. «I have a Dream» (Eu tenho um sonho) foram os dois maiores clamores pela liberdade, direitos, paz e justiça dos afros americanos. São centenas de jornalistas, críticos e intelectuais do Brasil e de todo mundo que elogia a (O Protesto) (Manifestação que é negra essência poderosa na transformação dos ideais do povo) obra enaltece com eloquência o divisor de águas inquestionável do racismo e cordialidade vigente do Brasil Mas a ditadura e o monopólio da mídia e manipulação das elites que dominam o Brasil censuram o poema Protesto de Carlos de Assunpção que é nosso protesto histórico e renasce e manifesta e congregam os negros e todos os oprimidos, injustiçados desta nação que faz a Copa do Mundo gastando bilhões para uma ilusão de um mês que poderá ser triste ou alegre para o povo brasileiro este mesmo que às vezes não tem ou economiza centavos para as necessidades básicas e até para sua sobrevivência e dos seus. No Brasil
    .
    Organização Negra Nacional Quilombo ONNQ 20/11/1970 –
    quilombonnq@bol.com.br

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  2. .
    Poema. Protesto de CARLOS DE ASSUMPÇÃO

    Mesmo que voltem as costas
    Às minhas palavras de fogo
    Não pararei de gritar
    Não pararei
    Não pararei de gritar

    Senhores
    Eu fui enviado ao mundo
    Para protestar
    Mentiras ouropéis nada
    Nada me fará calar

    Senhores
    Atrás do muro da noite
    Sem que ninguém o perceba
    Muitos dos meus ancestrais
    Já mortos há muito tempo
    Reúnem-se em minha casa
    E nos pomos a conversar
    Sobre coisas amargas
    Sobre grilhões e correntes
    Que no passado eram visíveis
    Sobre grilhões e correntes
    Que no presente são invisíveis
    Invisíveis mas existentes
    Nos braços no pensamento
    Nos passos nos sonhos na vida
    De cada um dos que vivem
    Juntos comigo enjeitados da Pátria

    Senhores
    O sangue dos meus avós
    Que corre nas minhas veias
    São gritos de rebeldia

    Um dia talvez alguém perguntará
    Comovido ante meu sofrimento
    Quem é que esta gritando
    Quem é que lamenta assim
    Quem é

    E eu responderei
    Sou eu irmão
    Irmão tu me desconheces
    Sou eu aquele que se tornara
    Vitima dos homens
    Sou eu aquele que sendo homem
    Foi vendido pelos homens
    Em leilões em praça pública
    Que foi vendido ou trocado
    Como instrumento qualquer
    Sou eu aquele que plantara
    Os canaviais e cafezais
    E os regou com suor e sangue
    Aquele que sustentou
    Sobre os ombros negros e fortes
    O progresso do País
    O que sofrera mil torturas
    O que chorara inutilmente
    O que dera tudo o que tinha
    E hoje em dia não tem nada
    Mas hoje grito não é
    Pelo que já se passou
    Que se passou é passado
    Meu coração já perdoou
    Hoje grito meu irmão
    É porque depois de tudo
    A justiça não chegou

    Sou eu quem grita sou eu
    O enganado no passado
    Preterido no presente
    Sou eu quem grita sou eu
    Sou eu meu irmão aquele
    Que viveu na prisão
    Que trabalhou na prisão
    Que sofreu na prisão
    Para que fosse construído
    O alicerce da nação
    O alicerce da nação
    Tem as pedras dos meus braços
    Tem a cal das minhas lágrima
    Por isso a nação é triste
    É muito grande mas triste
    É entre tanta gente triste
    Irmão sou eu o mais triste

    A minha história é contada
    Com tintas de amargura
    Um dia sob ovações e rosas de alegria
    Jogaram-me de repente
    Da prisão em que me achava
    Para uma prisão mais ampla
    Foi um cavalo de Tróia
    A liberdade que me deram
    Havia serpentes futuras
    Sob o manto do entusiasmo
    Um dia jogaram-me de repente
    Como bagaços de cana
    Como palhas de café
    Como coisa imprestável
    Que não servia mais pra nada
    Um dia jogaram-me de repente
    Nas sarjetas da rua do desamparo
    Sob ovações e rosas de alegria

    Sempre sonhara com a liberdade
    Mas a liberdade que me deram
    Foi mais ilusão que liberdade

    Irmão sou eu quem grita
    Eu tenho fortes razões
    Irmão sou eu quem grita
    Tenho mais necessidade
    De gritar que de respirar
    Mas irmão fica sabendo
    Piedade não é o que eu quero
    Piedade não me interessa
    Os fracos pedem piedade
    Eu quero coisa melhor
    Eu não quero mais viver
    No porão da sociedade
    Não quero ser marginal
    Quero entrar em toda parte
    Quero ser bem recebido
    Basta de humilhações
    Minh'alma já está cansada
    Eu quero o sol que é de todos
    Ou alcanço tudo o que eu quero
    Ou gritarei a noite inteira
    Como gritam os vulcões
    Como gritam os vendavais
    Como grita o mar
    E nem a morte terá força
    Para me fazer calar.
    Organização Negra Nacional Quilombo ONNQ 20/11/1970 –
    quilombonnq@bol.com.br

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